quinta-feira, 13 de junho de 2013

Pausa 

     Às sete horas, o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
__ Vais sair de novo, Samuel?
     Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
__ Todos os domingos tu sais cedo __observou a mulher com azedume na voz.
__ Temos muito trabalho no escritório __ disse o marido, secamente.
     Ela olhou os sanduíches:
__ Por que não vens almoçar?
__ Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.
     A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
__ Volto de noite.
     As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente; ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.
     Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé:
__ Ah! seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
__ Estou com pressa, seu Raul __ atalhou Samuel.
__ Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre. __ Estendeu a chave.
     Samuel subiu  quatro lanços de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade:
__ Aqui, meu bem! __ uma gritou, e riu: um cacarejo curto.
     Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.
     Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches . Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.
     Dormir.
     Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.
     Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo de luminoso no chão carcomido.
     Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se um sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.
     Ás sete horas, o despertador tocou, Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.
     Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
__ Já vai, seu Isidoro?
__ Já __ disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.
__ Até domingo que vem, seu Isidoro __ disse o gerente.
__ Não sei se virei __ respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.
__ O senhor diz isso, mas volta sempre __ observou o homem, rindo.
     Samuel saiu.
     Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou, um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Para casa.
             

Moacyr Scliar

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